terça-feira, 13 de abril de 2010

Gênese - Tom Wingfield- Á margem de Vida- Tennessee Williams

Jim,

Te escrevo quase em tom de desabafo. Muitas coisas aconteceram desde a última vez que nos vimos e acho que ainda não tenho o distanciamento necessário para saber o real efeito das minhas atitudes.
Bom, na madrugada do mesmo dia que fui demitido da sapataria, peguei algumas mudas de roupa e embarquei a bordo do cargueiro Endeavour. Escolhi o cargueiro não pelo nome, conforme possa parecer, mas pelo destino, China era o seu horizonte. Como você bem sabe, não deixei minha mãe e irmã em situação confortável e, hoje, passados cinco meses, um tormento me consome.

Essa carta não tem por objetivo dar explicações a ninguém, muito menos a você que nada sofreu com a minha partida, mas como disse no começo, a carta é em tom de desabafo. Fazia anos Jim, anos, que me sentia morto em vida consumido pela poeira do estoque daquela loja de sapatos, ANOS. Cada segundo que passava por alí tinha para mim o sofrimento de saber que era a minha vida que se ia consumindo na inutilidade de um emprego que eu odiava intensamente. Você acompanhou meu desespero, minhas saídas ocasionais para o banheiro onde ficava escrevendo as fracas poesias que viraram de repente, a única coisa que eu gostava de fazer, a única coisa que realmente valia à pena. Acredito que tenha suportado essa situação por tempo demais, por causa de Laura, por causa de mamãe.

Durante anos, Jim, anos, me mantive num emprego de merda e só eu sei a tortura que era levantar todos os dias. Como era difícil me manter no caminho que ia da casa para o trabalho, resistindo a vontade inevitável de descer em qualquer lugar, em qualquer esquina e sumir no mundo...Mas quando a vontade de sumir se transformou no desejo de pular de uma ponte achei que era o momento de fazer alguma coisa. Ficar era a morte, eu escolhi a vida.

Não quero que ninguém me perdoe, o que foi feito é imperdoável e apenas eu sei o peso da escolha que fiz. Mas mesmo aqui, do outro lado do mundo, fazendo o que acreditava ser meu sonho, não consigo parar de pensar em Laura e todas as cartas que mando retornam informando que elas se mudaram, o que não me admira, uma vez que não sei como pagariam o aluguel.

Você se incomodaria de falar com alguns vizinhos para ver se alguém sabe o novo endereço delas?
Sei que talvez não mude muito, mas gostaria de saber notícias e talvez mandar algum dinheiro.

Se puder, agradeço a ajuda...
abs
Tom.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Evocação da quinta-feita


A mudança repentina de foco de suas atividades era mal interpretada. Não se tratava, conforme queiram uns, do retrato de uma pessoa perdida que estava a marcar passo na vida, pelo contrário, revelava uma tentativa desesperada de encontrar algo que pudesse nutrir um objetivo, uma meta, para tornar possível o preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir.

Faço um desabafo da culpa que agora levo grudado feito sardas à minha existência. Algo que, assim como um pedido de desculpas, é desprovido de sentido e que apenas nutre benefício àquele que pede, na esperança de, em troca, carimbar como provido de um ISO9000 de espiritualidade evoluída para o outro que, apegado à doutrina cristã, finge perdoar. Utilizo o “fingir” porque se trata exatamente disso, pois, dada a inexistência de possibilidade de retorno ao status quo, a ficção de um perdão definitivo se revela apenas como lugar comum no qual todos desejam estar, um eldorado sentimental em que a riqueza reside apenas num altruísmo espiritual falsificado cuja função social é restrita ao preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir. Portanto, meu desabafo de culpa não visa o perdão de ninguém, uma vez que, na confusão entre perdoante e perdoado, resta apenas uma pessoa que, neste caso, vem a ser eu.

A razão de tudo isso é apenas terapêutica, gostaria de ter aproveitado mais tempo a companhia daquela menina que, tendo sido promovida da condição de trepada à namoro e depois à amizade, se revelara sensacional de acordo com o que minha opinião pode afirmar. Mas o movimento de pedir desculpas se faz necessário pois ela, tendo ligado várias vezes para chamar para alguns programas interessantes e outros nem tanto, encontrava alguém ao telefone receoso demais, preguiçoso demais, deprimido demais, para mover a bunda um centímetro que fosse.

O acúmulo de grande quantidade de segundos compreendidos entre “acordares” e “dormires”, ao mesmo tempo que tira, de sopetão, a inércia que pesava em minha bunda e faz com que me perceba em falta escrota, compele a mão ao telefone e o contato frívolo de quem, totalmente errado em sua babaquice, fala com a entonação tranqüila do “como se nada tivesse acontecido” na imbecilidade do assumir que se sofre de saudade.


“Qual a boa dessa noite?” A voz é alegre e remete a encontro casual em fila de caixa eletrônico.

“Álcool e barbitúricos” A voz é alegre e responde a cumprimento de encontro casual em fila de caixa eletrônico.

A resposta é compreendida com uma negativa de fazer qualquer programa para coroar o afastamento que causei. Mas na tranqüilidade de que ninguém seria genial a tal ponto, desligo o telefone sentido inveja da tenacidade e criatividade da resposta. Afinal, não posso competir com álcool e barbitúricos. Nunca fui, assim, tão interessante.

Tento reviver a experiência histórica ao menos como farsa ao repetir a resposta que me foi dada sozinho ao reflexo do espelho, mas por aqui o telefone nunca mais tocou...resta apenas o agradecimento por vodka não ter prazo de validade.

terça-feira, 2 de março de 2010

Olá, aqui é a residência do Sr. Sérgio Azevedo?

Não, mas entre...

Afora todo o resto, me sobro oco nessas quatro paredes que formam tanto um quarto como, facilmente, selariam uma prisão. Na dúvida, resta a certeza que se trata exatamente disso. Foda-se, não queria continuar de onde saí e nem permanecer aonde estou, então, como se diferença fizesse, ressalto minha ignorância e apego a banalidades na esperança de que algo ou alguém preencha o vazio que se soma ao infinito no prolongamento do improlongável; para além do continuísmo das reticências.

Faça silêncio, assim como o samba diz: Pise no chão devagarinho. A única coisa que resta por aqui é a concentração e, dessa porta em diante, de importância suprema. Não retire o pouco de quem nada tem. Meu inferno pode ser incômodo, mas é silencioso - só meu. Sinta-se privilegiado, puxe um banco e fume um cigarro. No meu inferno não há câncer de pulmão, nem pigarro ou mau hálito.Sim, eu sei, mas se estamos todos na merda (me confiro, nesse momento, título de porta-voz de uma geração inteira), de que serve a esquizofrenia mais do que a maconha e a cachaça.

No meu inferno não existem opiniões politicamente corretas, revista Veja, nem tortura ou torturados. Até que é light por aqui. Tem dias que canta Janis Joplin, outros Baby Consuelo. A vida não é assim? Por que no inferno haveria de ser diferente? Não quer mais ir embora? Nem eu, se possível acordava já nesta cadeira e dormiria por aqui também. Te confesso que quando não há ninguém olhando, dobro o inferno bem dobradinho, quase como origami de aula de arte de jardim de infância, sabe? Coloco no bolso e saio de fininho. Compro alfaces, alugo Almodóvar, namoro livros novos e até vou em reuniões de condomínio de vez em quando (frise-se: de vez em quando).

Gostei muito da sua visita, mas sabe que com esse lance todo de pós-modernidade, individualismo, fim da história, consumismo e outros nomes imbecis que, por ventura, você queira usar como eufemismo para período tão árido da felicidade e criatividade humana, digo que é hora de ir para o inferno, não o MEU, mas o vosso!

Mande notícias sempre tá, amado?

Enfim,que o inferno esteja conosco!

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

FUGA

Tem dias em que grito em silêncio,
outros que, em silêncio, grito.
Entre urros e caladas, não sei se morro ou se vivo.

Se me pergunto o propósito, o eco da voz responde,
na desistência da pergunta apenas o berro irrompe.
Vivo em silêncio como quem morre gritando,
morro em vida como quem silencia gritando...

Não, não há nenhuma porta que leve pra fora,
nem lugar fora que não esteja dentro.
Colocar em movimento é deitar, dormir e roncar feito um porco.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Alameda Lorena

A chuva caía no guarda-chuva preto vagabundo que se tremilicava e se arrepiava com o vento indeciso que não sabia para onde ventar. A mão trazia um cigarro que tentava ser fumado. Os olhos choravam não muito nem pouco. A cabeça se ocupava de uma dor profunda e aparentemente sem razão. A chuva, o guarda-chuva, a mão, o cigarro, a cabeça e a solidão. Tudo isso só pra se saber suportar qualquer coisa. Era desnecessário, não havia a menor curiosidade.

domingo, 29 de novembro de 2009

Estive pensando...

Pensando morreu o burro, então como não há remédio, penso. Penso no burro, em mim, na morte, e termino sem entender. Daí acabo pensando mais e mais. Penso tanto que acabo esquecendo do burro e do motivo por te começado a pensar. Penso, entretanto, com mais força de pensar para encontrar o burro que nem sei mais onde está. E quanto mais penso que penso, mais perdido ficamos eu, o burro e a morte que, coitada, nem sabe mais o que faz no meio dessa confusão. Então, como era de se esperar, desisto de pensar, e penso, assustado, que não há como parar. Assim, paro de tentar parar de pensar e penso que pensando hei de pensar até encontrar a morte, como o burro. Não é, menina, que é verdade? Agora entendi. Que burro!

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Você sabe do que eu estou falando!

Você sabe muito bem do que eu estou falando!

Sei?

Por que as pessoas sempre acham que você sabe do que elas estão falando?

Caralho! Não faço a menor porra da idéia do que você está falando. Dentre o seu universo de nóias e coisas negativas, entre um milhão de possibilidades de enxergar o mundo, por que teria eu a obrigação de enxergá-lo como você? Isso, só para que ter certeza absoluta do que você está falando. Já parou pra pensar sobre isto?

Não, não senhor. Pode ir parando com esse papinho, você sempre faz isso.

Isso o quê?

Isso que você faz. Que nem aquele dia que voltávamos da casa da Marcela, você fez a mesma coisa, exatamente a mesma coisa.

Como se pode fazer uma coisa que não sabe nem o que é? Como repetir o erro ou algo desagradável, quando inexistente? Me diz!

Tá vendo? É disso que eu estou falando, e você diz que não sabe.

Você que tem essa mania de achar que eu sempre sei do que você está falando, que o mudo tem a obrigação de sabê-lo também, e que estamos todos errados por conta disso. Eu, você e o mundo.

Há, vai dizer que você não sabe.

Sabe do que eu tenho mais medo?

Do que?

Só tem uma frase sua que me faz temer mais que esse troço de “Você sabe do que eu estou falando!”.

Ah é? E qual é?

É a maldita: Você não vê nada de diferente em mim!? ...(pausa dramática)...Viu? Tenho certeza que você sabe do que eu estou falando.

Depois disso, foram cinco minutos de silêncio ininterrupto na mesa da lanchonete. Camila dobrava guardanapos, e Carlos fumava olhando a chuva que caía lá fora, até que alguém na mesa ao lado quebrou o silêncio com um canudo: chupou rápido todo o líquido de coca num copo cheio de gelo, que gritou.
 
eXTReMe Tracker