A mudança repentina de foco de suas atividades era mal interpretada. Não se tratava, conforme queiram uns, do retrato de uma pessoa perdida que estava a marcar passo na vida, pelo contrário, revelava uma tentativa desesperada de encontrar algo que pudesse nutrir um objetivo, uma meta, para tornar possível o preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir.
Faço um desabafo da culpa que agora levo grudado feito sardas à minha existência. Algo que, assim como um pedido de desculpas, é desprovido de sentido e que apenas nutre benefício àquele que pede, na esperança de, em troca, carimbar como provido de um ISO9000 de espiritualidade evoluída para o outro que, apegado à doutrina cristã, finge perdoar. Utilizo o “fingir” porque se trata exatamente disso, pois, dada a inexistência de possibilidade de retorno ao status quo, a ficção de um perdão definitivo se revela apenas como lugar comum no qual todos desejam estar, um eldorado sentimental em que a riqueza reside apenas num altruísmo espiritual falsificado cuja função social é restrita ao preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir. Portanto, meu desabafo de culpa não visa o perdão de ninguém, uma vez que, na confusão entre perdoante e perdoado, resta apenas uma pessoa que, neste caso, vem a ser eu.
A razão de tudo isso é apenas terapêutica, gostaria de ter aproveitado mais tempo a companhia daquela menina que, tendo sido promovida da condição de trepada à namoro e depois à amizade, se revelara sensacional de acordo com o que minha opinião pode afirmar. Mas o movimento de pedir desculpas se faz necessário pois ela, tendo ligado várias vezes para chamar para alguns programas interessantes e outros nem tanto, encontrava alguém ao telefone receoso demais, preguiçoso demais, deprimido demais, para mover a bunda um centímetro que fosse.
O acúmulo de grande quantidade de segundos compreendidos entre “acordares” e “dormires”, ao mesmo tempo que tira, de sopetão, a inércia que pesava em minha bunda e faz com que me perceba em falta escrota, compele a mão ao telefone e o contato frívolo de quem, totalmente errado em sua babaquice, fala com a entonação tranqüila do “como se nada tivesse acontecido” na imbecilidade do assumir que se sofre de saudade.
“Qual a boa dessa noite?” A voz é alegre e remete a encontro casual em fila de caixa eletrônico.
“Álcool e barbitúricos” A voz é alegre e responde a cumprimento de encontro casual em fila de caixa eletrônico.
A resposta é compreendida com uma negativa de fazer qualquer programa para coroar o afastamento que causei. Mas na tranqüilidade de que ninguém seria genial a tal ponto, desligo o telefone sentido inveja da tenacidade e criatividade da resposta. Afinal, não posso competir com álcool e barbitúricos. Nunca fui, assim, tão interessante.
Tento reviver a experiência histórica ao menos como farsa ao repetir a resposta que me foi dada sozinho ao reflexo do espelho, mas por aqui o telefone nunca mais tocou...resta apenas o agradecimento por vodka não ter prazo de validade.