quinta-feira, 4 de março de 2010

Evocação da quinta-feita


A mudança repentina de foco de suas atividades era mal interpretada. Não se tratava, conforme queiram uns, do retrato de uma pessoa perdida que estava a marcar passo na vida, pelo contrário, revelava uma tentativa desesperada de encontrar algo que pudesse nutrir um objetivo, uma meta, para tornar possível o preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir.

Faço um desabafo da culpa que agora levo grudado feito sardas à minha existência. Algo que, assim como um pedido de desculpas, é desprovido de sentido e que apenas nutre benefício àquele que pede, na esperança de, em troca, carimbar como provido de um ISO9000 de espiritualidade evoluída para o outro que, apegado à doutrina cristã, finge perdoar. Utilizo o “fingir” porque se trata exatamente disso, pois, dada a inexistência de possibilidade de retorno ao status quo, a ficção de um perdão definitivo se revela apenas como lugar comum no qual todos desejam estar, um eldorado sentimental em que a riqueza reside apenas num altruísmo espiritual falsificado cuja função social é restrita ao preenchimento da rotina diária dos segundos compreendidos entre o acordar e dormir. Portanto, meu desabafo de culpa não visa o perdão de ninguém, uma vez que, na confusão entre perdoante e perdoado, resta apenas uma pessoa que, neste caso, vem a ser eu.

A razão de tudo isso é apenas terapêutica, gostaria de ter aproveitado mais tempo a companhia daquela menina que, tendo sido promovida da condição de trepada à namoro e depois à amizade, se revelara sensacional de acordo com o que minha opinião pode afirmar. Mas o movimento de pedir desculpas se faz necessário pois ela, tendo ligado várias vezes para chamar para alguns programas interessantes e outros nem tanto, encontrava alguém ao telefone receoso demais, preguiçoso demais, deprimido demais, para mover a bunda um centímetro que fosse.

O acúmulo de grande quantidade de segundos compreendidos entre “acordares” e “dormires”, ao mesmo tempo que tira, de sopetão, a inércia que pesava em minha bunda e faz com que me perceba em falta escrota, compele a mão ao telefone e o contato frívolo de quem, totalmente errado em sua babaquice, fala com a entonação tranqüila do “como se nada tivesse acontecido” na imbecilidade do assumir que se sofre de saudade.


“Qual a boa dessa noite?” A voz é alegre e remete a encontro casual em fila de caixa eletrônico.

“Álcool e barbitúricos” A voz é alegre e responde a cumprimento de encontro casual em fila de caixa eletrônico.

A resposta é compreendida com uma negativa de fazer qualquer programa para coroar o afastamento que causei. Mas na tranqüilidade de que ninguém seria genial a tal ponto, desligo o telefone sentido inveja da tenacidade e criatividade da resposta. Afinal, não posso competir com álcool e barbitúricos. Nunca fui, assim, tão interessante.

Tento reviver a experiência histórica ao menos como farsa ao repetir a resposta que me foi dada sozinho ao reflexo do espelho, mas por aqui o telefone nunca mais tocou...resta apenas o agradecimento por vodka não ter prazo de validade.

terça-feira, 2 de março de 2010

Olá, aqui é a residência do Sr. Sérgio Azevedo?

Não, mas entre...

Afora todo o resto, me sobro oco nessas quatro paredes que formam tanto um quarto como, facilmente, selariam uma prisão. Na dúvida, resta a certeza que se trata exatamente disso. Foda-se, não queria continuar de onde saí e nem permanecer aonde estou, então, como se diferença fizesse, ressalto minha ignorância e apego a banalidades na esperança de que algo ou alguém preencha o vazio que se soma ao infinito no prolongamento do improlongável; para além do continuísmo das reticências.

Faça silêncio, assim como o samba diz: Pise no chão devagarinho. A única coisa que resta por aqui é a concentração e, dessa porta em diante, de importância suprema. Não retire o pouco de quem nada tem. Meu inferno pode ser incômodo, mas é silencioso - só meu. Sinta-se privilegiado, puxe um banco e fume um cigarro. No meu inferno não há câncer de pulmão, nem pigarro ou mau hálito.Sim, eu sei, mas se estamos todos na merda (me confiro, nesse momento, título de porta-voz de uma geração inteira), de que serve a esquizofrenia mais do que a maconha e a cachaça.

No meu inferno não existem opiniões politicamente corretas, revista Veja, nem tortura ou torturados. Até que é light por aqui. Tem dias que canta Janis Joplin, outros Baby Consuelo. A vida não é assim? Por que no inferno haveria de ser diferente? Não quer mais ir embora? Nem eu, se possível acordava já nesta cadeira e dormiria por aqui também. Te confesso que quando não há ninguém olhando, dobro o inferno bem dobradinho, quase como origami de aula de arte de jardim de infância, sabe? Coloco no bolso e saio de fininho. Compro alfaces, alugo Almodóvar, namoro livros novos e até vou em reuniões de condomínio de vez em quando (frise-se: de vez em quando).

Gostei muito da sua visita, mas sabe que com esse lance todo de pós-modernidade, individualismo, fim da história, consumismo e outros nomes imbecis que, por ventura, você queira usar como eufemismo para período tão árido da felicidade e criatividade humana, digo que é hora de ir para o inferno, não o MEU, mas o vosso!

Mande notícias sempre tá, amado?

Enfim,que o inferno esteja conosco!
 
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